Era total a minha inabilidade: acercava-me, numa saciedade imprecisa da memória; dizia: acerco-me, mas o sorriso caía, como uma praça forte que tombava às mãos impolutas de quem a merecia. Incapaz, o sorriso esmorecido, tentava lançar os frecheiros, os lanceiros, os caldeirões de azeite fervente, até. A conquista consumava-se, no entanto. Os aríetes, as escadas, os besteiros, iam matando a minha alegria, o meu sorriso desvanecia-se como a morte esbofeteava os soldados nas ameias e muralhas. Transmutou-se, então, o meu sorriso: de praça forte forte a sitiada e conquistada; o valor do saque era riso, fruto do orgulho nos meus campos a perder de vista. Ah! Se a minha alegria fosse uma palavra apenas! (fonte da imagem: http://pichost.me/1761943/)
Espraia-te, silêncio, busca-me, entre as pedras, pelos recantos redondos da areia, mas não vás por mim à beira-mar. Sabes, silêncio? As ondas rebatem, soltam-se e saltam e, quando não esperamos, ribombam e trovejam - imitação de fúria celeste. Agora, silêncio, agora é tempo de me embalares, caminho furtivo, busca do adormecer, rusga poética na dormência do sol-pôr.
Encanta-me o entardecer, não pelas suas sombras, mas pelo dia que continuamente me oferece. E tantas vezes, no seu brilho altruísta, dá-me a luz dourada, reflexo puro da sua majestade. ("Há-de aparecer-te uma sombra, uma ponta de tristeza. Olha a luz, analisa o teu mal e nunca deixes de regressar e de ir. Será esse o teu fado." Fala de Adeo a seu servo e amigo Paciano)
(fonte da imagem: https://www.dailypainters.com/paintings/59216/Newport-Beach-Back-Bay-Painting-California-impressionist-sunset/Karen-Winters)
Amiga: A vida é um sussurro que percorre as folhas do calendário deixando-me atónito. Cada ocaso é um só, e as colinas escorregando pelas águas tornam-se marcos onde o tempo, forçosamente, se imobiliza. Sei que para ti, caríssima, o tempo é um escolho, deve ser esquecido enterrado, até. Mas ele vulgariza-te nas sombras que antecedem as rugas. Sabes? Foi ontem que nos conhecemos, que brincámos com as palavras em jardins escorados por esplanadas e risos. Hoje, a galhofa é outra: o tempo saltou para as nossas cavalitas tapando-nos os olhos e a boca, alimentando-se de nós. Hoje, somos espelhos de todos os prazos; somos resquícios de uma alegria tão efémera como as folhas do calendário. Somos pasto do tempo; quebra, pois, os relógios e o sortilégio das horas! Um beijo grande. Jaime
(fontes das imagens: 1ª - https://br.depositphotos.com/36283215/stock-photo-calendar-pages-flying-away-time.html 2ª - http://www.oh-i-see.com/blog/2014/01/09/reflections-on-time-passing/)
Timbrei o meu escrito: os verbos, os sujeitos (tantos esses), os complementos (que, na sua limpidez, na precisão do seu eixo nada apontavam). As palavras - tantas vezes - cansam, enredam-se na boca, na ponta dos dedos; nem mostram a humildade de um poente caindo sobre si, cisne morrendo-se. Entretanto, tenho de escrever, escrever muito, escrever de cor, escrever até a dor derrotar os sentidos. Que ofício este! Ser e não ter, ter e não ser... (...) e as palavras sem dono, sem mestre, vogando, vogando sempre. (fonte da imagem: http://eresaw.deviantart.com/art/The-dying-swan-272293091)
Faz tempo que te não vejo. O anoitecer, a sua luz, traz-me desenhos pueris, manchas vivazes, de ti.
Pediste-me que te esperasse, que atentasse no Sol, na Lua, e os teus sinais viriam Acocoro-me sobre um montinho de areia, e miro o mar e os montes que nele mergulham. Só imagens fugazes transportadas pelo tempo, reversas na sua descontinuidade. Paira uma manta de esquecimento, um lençol de valquírias chorosas; já não há reino etéreo onde guardar a tua memória. Assim me sustento, nas cores de uma paleta, nas tintas que se extinguem apontando para longe no tempo. (fonte da imagem: http://www.heathenhof.com/what-is-valhalla-and-who-goes-there/)
Esqueci o p/b do que sinto na luz afável, do entardecer na minha desconhecida Antuérpia. O brilho das águas-régias desfaz, suavemente, toda a paisagem, mesmo sendo Primavera. Adormeço a p/b e não o lamento: nada há de mais belo do que o cintilar líquido, roçando os sonhos suaves nesta tua Antuérpia natal.
"[...] Apesar de tudo o que se passa à nossa volta, sou optimista até ao fim. Não digo como Kant que o Bem sairá vitorioso no outro mundo. O Bem é uma vitória que se alcança todos os dias. Até pode ser que o Mal seja mais fraco do que imaginamos. À nossa frente está uma prova indelével: se a vitória não estivesse sempre do lado do Bem, como é que hordas de massas humanas teriam enfrentado monstros e insectos, desastres naturais, medo e egoísmo, para crescerem e se multiplicarem? Não teriam sido capazes de formar nações, de se excederem em criatividade e invenção, de conquistar o espaço e de declarar os direitos humanos. A verdade é que o Mal é muito mais barulhento e tumultuoso, e que o homem se lembra mais da dor do que do prazer."
Naguib Mahfouz, romancista egípcio, na mensagem que enviou, em 1988, à Academia Real Sueca a agradecer o Prémio Nobel da Literatura, o único a ser atribuído até à data, a um escritor árabe
(cit. em "Dicionário do Islão", Margarida Lopes, ed. Notícias)